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Hoje é dia de São Mamede

( Sexta-feira, 17 de Agosto de 2012 )

Texto retirado do Livro “Historia e Tradição” da autoria de João Rodil e editado pela Junta de Freguesia de São Martinho.

 

A CAPELA CIRCULAR

 

Todo o homem do campo tem uma relação especial com os animais. É uma convivência quotidiana que vem de milénios, no árduo trabalho da terra, no companheirismo salutar da viagem ou da caça, na protecção que oferecem uns aos outros. Mesmo quando se trata de animais de criação, ou seja, animais propositadamente criados para alimentação dos homens, a estima é igual. Por isso, quando algum deles adoece, o trabalhador rural fica preocupado. E não é, apenas, o prejuízo causado pela hipotética morte do animal que o apoquenta. Da lida diária, ao alimentá-lo, ao limpar-lhe a cama, vai ganhando uma estima muito peculiar pelo bicho. E, então, se acaso surge uma epidemia, é o desânimo total, sobretudo quando isso acontece em pequenas aldeias cujos recursos não são abastados.

Pois foi, exactamente, o que aconteceu a duas aldeias vizinhas do termo de Sintra. No tempo em que as caravelas ainda desbravavam mundo, lá pelo princípio do século de quinhentos, uma febre vinda não se sabe de onde atacou o gado de Janas e de Fontanelas. E aquela gente pobre, ainda mais pobre ficou. Todos os dias morriam vacas, burros e porcos, já para não falar da bicharada miúda, que essa desaparecia a olho nu.

Nada parecia conseguir contrariar a maldita peste. Testavam-se mesinhas, leveduras, diziam-se missas, faziam-se promessas, e o resultado era sempre o mesmo – meia dúzia de animais enterrados por dia.

Certa manhã fria de Novembro, duas mulheres que viviam em Janas foram trabalhar numa courela que possuíam perto de Fontanelas. Quando iam já perto do rio Cameijo, num cabeço coberto de mato e pinhal onde se avista a Serra de Sintra, encontraram um pobre mendigo sentado num penedo à beira do caminho.

-       Então, homem, aqui ao relento logo pela manhã?

-       É o que Deus quer...

-       Ó senhor! Deus quer lá uma coisa destas!... Então de onde veio? De Fontanelas? Não acredito que não lhe tenham dado abrigo por lá...

-       Venho de todo o lado e de lado nenhum...

Aqui, as mulheres enxofraram-se. Chisparam um olhar escuro contra o mendigo, esticaram os peitos fartos para ele, e já com uns calores a subirem ao rosto, atacaram:

-       Oiça lá, ó seu pé rapado, você está a desconversar connosco?

-       Longe de mim, senhoras! O que digo é que isto é coisa do Destino.

-       Hã! Bom... sendo assim...

-       E quis Deus, também, que eu encontrasse vossas mercês, que são almas caridosas capazes de dar, por certo, uma esmola a um pobre...

Uma delas desatou o saco da merenda e, tirando um bocado de pão e um naco de chouriço, ofereceu-o ao mendigo.

-       Tome lá, que vossa mercê tem cara de quem ainda não matou o bicho!

-       Que Deus vos pague. E pagará com certeza, que Ele ajuda sempre os caridosos.

-       Bem falta nos fazia a ajuda Dele!...

-       Então?

-       É o gado, que morre a torto e a direito... uma miséria!

Deixaram o mendigo a comer à beira do caminho e lá seguiram ao seu destino, tão duro e amargo quanto o dele.

 

Naquele mesmo dia, quando regressavam a Janas já na penumbra do sol posto, ao passar pelo sítio onde tinham encontrado o pedinte, acharam, em lugar dele, uma pequena imagem de um santo. Surpreendidas, e sem saberem que santo era aquele, levaram a imagem para a aldeia e contaram o sucedido. Facilmente o povo ligou a aparição com o mendigo, ou Jesus na pele dele, como alguns afirmavam.

A notícia correu célere e depressa chegou aos ouvidos do pároco, que depressa identificou o santo como sendo São Mamede, padroeiro e protector dos animais. Preocupado com a moral das gentes, o padre viu ali, no surgimento daquela imagem, um bom motivo para empolgar a fé dos paroquianos. E, então, propôs que se levantasse uma capela no local onde se tinha dado o milagre.

O entusiasmo foi grande, não só em Janas mas, igualmente, nas terras vizinhas. Depressa se juntou alguns donativos em dinheiro, poucos esses, porque a maioria apenas podia pagar em géneros. Assim, havia gente que se disponibilizava para trabalhar na obra, outros davam a pedra, a areia, as madeiras. Reunidas as condições para iniciar os trabalhos, acordou-se que eles seriam conduzidos por um experiente mestre de obras lá da terra, chamado Afonso Dias, homem respeitado por todos, sobejamente conhecido na arte de construir, e que oferecia garantias de sucesso na empreitada.

No dia combinado, reuniu-se o povo para desbravar o cabeço onde seria edificada a capela. E o entusiasmo foi tal que ainda não tinha chegado o meio-dia, já a área estava limpa. Afonso Dias tratou logo de marcar os caboucos e, depois da janta – que nesta região se dá por volta da uma hora da tarde – os homens, armados de pás e enxadas, começaram a escavar as fundações. A capela teria a orientação normal, segundo os moldes canónicos, com o altar a Oriente, porque é de lá que vem a Luz, e a entrada a Ocidente. Singela, porque os cabedais eram poucos, tomaria a forma rectangular, embora Afonso Dias guardasse o desejo de adoçar dois altares laterais que lhe daria a configuração de uma cruz.

E dos braços fortes daqueles homens rudes, alentados pela fé, resultou que ao pôr-do-sol os caboucos da futura ermida estavam abertos até à profundidade de doze palmos. No fim da jornada, o povo olhava embevecido para aquele rectângulo escavado no chão e imaginava já a obra a crescer.

Afonso Dias foi o último a abandonar o sítio. Ficou ali até ao lusco-fusco, a desenhar paredes e colunas, portas e capitéis na sua cabeça. E só depois, quando todos já haviam rumado às suas casas, Afonso partiu em busca da ceia e do repouso merecido.

De tão cansado que estava, deitou-se mal acabou de comer. Mas o sono, em vez de reparador, veio-lhe aos tropeções. E toda a noite sonhou o mesmo sonho. Era uma vaca que andava às voltas sem parar, como se estivesse a puxar uma nora ou a debulhar trigo. E depois juntavam-se à vaca outros animais, todos eles às voltas, rodando continuamente em círculo, num corrupio estonteante que com que Afonso caísse duas vezes da cama.

Madrugou cansado daquela noite inquieta. Matou o bicho com duas colheres de sopa e um cálice de aguardente. Aparelhou o burro à carroça e carregou as ferramentas. E ainda mal despontava o dia, já ele chegava ao local da obra.

Afonso atou o burro a um velho pinheiro manso e desatrelou a carroça. Pegou numa enxada e abeirou-se das fundações abertas de véspera. E o que viu deixou-o perplexo. Alguém tinha soterrado os quatro cantos dos caboucos durante a noite. Apoiado no cabo da enxada, atónito com tudo aquilo, ficou ali a pensar quem poderia cometer tal malvadez.

Entretanto, foi chegando povo. E, à medida que se aproximavam, largavam exclamações de surpresa e de repúdio. Tanto trabalho, tanto empenho, e agora era quase como começar de novo.

-       Isto é obra do Diabo – apontava um.

-       Só pode ser... só pode ser... – contemporizava outro.

-       Bom, seja quem for não vai conseguir travar a obra. Vamos lá ao trabalho! – ordenou Afonso Dias.

Mas o dia não rendeu, ou porque o desânimo refreou os ímpetos ou porque refazer um trabalho já efectuado é mais penoso, para além de se reconstruir os cantos às fundações pouco mais se adiantou.

Nessa noite, o mesmo sonho voltou a importunar Afonso Dias. Outra vez a vaca, caminhando em círculos, e depois todos os outros animais, seguindo-a naquela roda viva. E. para espanto de todos, na madrugada seguinte depararam com os cantos dos caboucos igualmente enterrados. Mais uma vez os reconstruíram e, de novo, eles apareceram tapados.

À terceira noite, Afonso voltou a ter o mesmo sonho. Mas, desta feita, a vaca andava em volta de uma construção circular. Vieram os outros animais e seguiram o mesmo ritual. E já no despertar do sonho, o mestre de obras conseguiu vislumbrar, ainda, uma cruz de pedra no alto daquele estranho edifício.

Naquela manhã, levantou-se mais tarde. Quando chegou à obra, já o povo, agora em menor número, suspirava desalentado a olhar para os cantos acravados de terra e pedras. Contudo, Afonso Dias trazia um sorriso estampado no rosto. Estranhando aquela boa disposição do mestre, alguns deles até aventavam a hipótese de que não estaria no seu perfeito juízo. Mas Afonso mandou-os reunir e contou-lhes o sonho que o andava a perseguir há três noites.

-       E eu acho que encontrei a solução para a nossa capela! Vamos construi-la em forma redonda, como se fazem os poços ou algumas torres.

Meio descrentes com a ideia, lá foram os aldeões abrindo novos caboucos, agora dando uma forma circular ao edifício. A surpresa veio no dia seguinte. Quando chegaram, esperando encontrar tudo tapado, descobriram que o trabalho efectuado na véspera estava intacto. E, com ânimo redobrado, lançaram-se à empreitada que decorreu até ao fim sem outro sobressalto.

A inauguração deu-se a 17 de Agosto, que é dia consagrado a São Mamede pelo calendário cristão. Toda a semana o povo enfeitou a capela e o largo fronteiro, com urze e bucho entrançado, flores de todo o tipo, e organizou-se um simples, mas recheado, programa de festas.

Na manhã do dia tão desejado, deu-se outro fenómeno – isto para não lhe chamar milagre. Quando as pessoas chegaram ao largo da festa, encontraram dezenas de animais andando às voltas em torno da capela. E outros continuavam a chegar, vindos dos campos. Alguns deles, visivelmente doentes, davam três voltas ao santuário e partiam perfeitamente curados.

Afonso Dias, que presenciava tudo aquilo, reconheceu, à frente de toda aquela procissão de gado, a sua vaca. A vaca dos seus sonhos.

 

 

 

 

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Adriano Filipe

 

 

 

 

 

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